11/10/2009

À Virgem de Nazaré

largo

Nas nossas brincadeiras de criança o Círio de Nazaré tinha espaço cativo.

Quatro pedaços de caibros faziam o andor. Em cima, um toco de madeira mais grossa, enrolado em uma toalha de mesa que surrupiávamos de casa, era a Virgem de Nazaré.

O mês de outubro chegava e a romaria começava. O Rio Tocantins se emprenhava de barcos de todos os tipos. Os barcos se emprenhavam de pessoas que se iam somando, pelas beiradas, rumo à Belém.

Parecíamos cruzados do Velho Mundo rumo a Jerusalém: o manso Rio deixava rolar em seu dorso aquele punhado de almas e os descarregava no Porto do Sal, ponto final de todos os barcos oriundos do alto e baixo Tocantins.

Quando o barco deixava o Tocantins e entrava na Baía de Guajará, lá estava Belém, a capital. Geralmente chegávamos à noite, e aquela imensidão de luzes de cores variadas e vibrantes, para nós, caboclos de lamparinas, era um espetáculo deslumbrante.

Era hora de se arrumar, o que significava vestir a melhor roupa e passar brilhantina Glostora nos cabelos, para desembarcar na capital. Meu avô materno, o velho Samuel, usava Quina Petróleo Sandar nos ralos cabelos que lhe remanesceram da juventude. Podia ventar forte. Viessem furacões: os ralos cabelos do velho samuca não ousavam assanhar.

O porão do barco começava a vomitar malas de todos os tipos e gostos. As nossas eram duas de madeira de lei (imaginem o peso), e mais uma imensidão de sacolas que traziam tudo que se podia colocar nelas, de azeite de andiroba a murici em garrafas. Se alguém tinha pecados, os pagava todos e ficava com crédito ao carregar aqueles cabedais.

Os táxis eram disputadíssimos. Amiúde éramos obrigados a ir até a Praça do Relógio para conseguir algum, enquanto alguém ficava vigiando a bagagem. A viagem de táxi para nós crianças, era um verdadeiro êxtase. Era como se hoje eu viajasse em um disco voador.

No dia do círio a minha roupa predileta era uma de marinheiro, azul e branca, e sapatos Vulcabras, que eu, imitando meu pai, passava óleo de cozinha para brilhar.

Tinha também o meu relógio de pulso especial, presente de um amigo de meu pai quando fiz nove anos de idade, que eu só usava em ocasiões festivas.

O que me encantava naquele relógio era a sua pulseira de legítimo couro de maracajá, que combinava perfeitamente com um cinto do mesmo tipo, que eu também fora presenteado por meu pai. E lá íamos nós para a procissão...

De repente estávamos lutando pela sobrevivência no meio da multidão. Eu já nada entendia. O sufoco era tanto que eu não mais sabia o que fazia ali.

- Olha a corda! Falava minha irmã.

E eu via pessoas suadas fazendo um esforço heroico para segurar uma corda. Não sei porque cargas d’água eu imaginava que na ponta do cabo estava preso o satanás, que queria levar a Virgem. Eu pedia para o meu pai colocar-me nos ombros para eu ver melhor.

Lá de cima, olhava em todas as direções tentando enxergar o danado, para tirar a dúvida e confirmar se era a mesma figura que eu costumava ver à noite, em meus pesadelos. Mas não conseguia. Ficaria para o próximo ano...

Só acabava a liça quando conseguíamos entrar na Basílica e tomávamos a bênção da Santa.

Na segunda-feira era a parte mais esperada: o Largo de Nazaré. Tínhamos que voltar para Tucuruí na terça e o largo era a despedida.

Ainda hoje me pego buscando na memória a sensação deslumbrante do sobe e desce circular do carrossel de cavalinhos, o tiro ao alvo, a pescaria, a roda gigante e um filme de Tarzan no Cine Moderno. Aquilo sim era o paraíso!

Como dizia o Ataulfo, eu não sei por que a gente cresce...

Hoje já não me aventuro mais a acompanhar a procissão. Algo nisto tudo perdeu o sentido para mim. Gostaria de ter conservado a magia que via em criança.

Meu pai, quando partiu, levou consigo o ombro que me servia de pedestal. Isto, contudo, não é um fundamento. Antes mesmo de meu pai ir eu já houvera perdido o entusiasmo pelo Círio. Nunca parei para intuir e descobrir quando, como e onde isto ocorreu.

O fato é que não gosto do Largo de Nazaré como ele é agora: modernoso e impessoal.

O Mário Quintana tinha razão: não gosto da arquitetura moderna porque ela não consegue fazer casas antigas.

Isto foi um passado. Resta-me, porém, a terna lembrança. E recordar, se não é viver, chega a ser um doce e voluptuoso suplício.

Foto: acervo do IBGE

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